Falo, é verdade, com pouquíssima gente. Mas falo, apesar de tudo, com vária gente que vai votar Cavaco, com algumas pessoas que vão votar Alegre, com pessoas que não vão votar em ninguém, e com uma pessoa (com quem, por acaso, não falo há algum tempo) que vai votar Soares (pelo menos, fazendo parte da respectiva Comissão de Honra, tem obrigação de o fazer). Sobre as pessoas que vão votar Cavaco, não me pronuncio. Sobre a pessoa que vai votar Soares (irá?), também não. Sobre abstencionistas, o mesmo. O interessante são os votantes de Alegre.
Porquê Alegre? Desde que as candidaturas foram declaradas que me confrontei com um enigma. Percebe-se porque Cavaco se candidata, e percebe-se porque é que as pessoas vão votar nele. Percebe-se porque é que as pessoas vão votar em Soares, mas não se percebe porque é que ele se candidata (a explicação psicológica é, por força das coisas, redutora). Percebe-se porque é que Alegre se candidata, mas não se percebe porque vão votar nele.
Porque é que se vota em Alegre? A custo, a ideia entra na cabeça, com um bocadinho de observação do mundo em volta, ajudada por conversas sortidas. Porque é um alívio. Soares gera uma detestação militante: está, pura e simplesmente, fora de questão. Os outros, tirando Cavaco, não contam (Jerónimo é comprometedor, e Louçã vai perdendo a graça (?)). De Cavaco, muita gente, por falta de imaginação para sair de si – ou, se se quiser, por “preconceito” -, não gosta, e a sua notória insensibilidade à questão ajuda a ofender quem vive do dúbio privilégio da atenção, por mais remota e indirecta que seja, do poder. Sobra Alegre. Alegre, magnificamente, tem aquilo que, por exemplo, Louçã não tem. O quê? Uma espécie de capacidade de sublimar reivindicações avulsas em símbolos que tradicionalmente são considerados “poéticos”.
Um exemplo modesto e aparentemente extravagante: a página 3 da lista telefónica. Como muitos portugueses, sem dúvida, para encontrar o número do “Despertar”, perdi tempos e tempos a debater-me com vários outros números: da igualdade e direitos das mulheres, de apoio às “vítimas”, das grávidas, das crianças (maltratadas ou não), dos idosos, dos deficientes, dos alcoólicos, dos anti-alcoólicos, dos drogados, da “sexualidade”, da SIDA, dos estudantes, dos fumadores, da “voz amiga”, etc. Vejamos Louçã. Louçã estabelece conexões impecáveis entre estas coisas, e as outras todas – imaginem um discurso dele: não é difícil -, mas acaba, no seu insano afã, por aborrecer. É demasiado inteligente (leia-se: tem uma fluência verbal impecável, a roçar o patológico), e, humildes, os portugueses, tirando o grosso dos jornalistas (por defeito profissional: não ter opinião sobre tudo é crime de lesa-majestade), não se revêem nele. Aquando dos debates televisivos, mal saía do carro e um jornalista, à entrada do estúdio, o interrogava, começava logo a desbobinar. É isso. Alegre, pelo contrário, sublima. E de que maneira! Fraqueja, engasga-se, mas logo salta, imperativo, um símbolo. Ou dois, ou três. Todos os que a "pátria" e a "rapaziada nova" comportarem. É ele a verdadeira “voz amiga”. Como Louçã, liga tudo - mas fá-lo com uma tranquilizadora vacuidade, tanto mais tranquilizadora e vácua quanto grave: é o anti-Marcelo da RTP. Até na voz. Não saltita: liga à terra e aos antepassados todos. A gente vê Viriato. E, vendo Viriato, perdoamos. É a versão política de José Hermano Saraiva (tirando que este, com todos os defeitos, instrui). Um beijinho de comunhão espiritual no busto de Torga não ofende ninguém. É um afecto que não compromete. Em matéria de voto telúrico, não há melhor. Porque Alegre não tem, ao fim e ao cabo, doutrina. Convenientemente, substituiu-a pela pessoal biografia, que, para a nossa paz, e a dele – porque foi certamente, em muita coisa, corajosa e difícil -, pertence ao passado. Alegre é um alívio.
E o alívio é simpático. Mais do que isso: elimina a irritação. Em eleições, é uma vantagem em nada despicienda. Sobretudo num aspecto. É a maneira de ser de esquerda sem consequência, que é a maneira naturalmente preferida da gente que, por tradição (votar PS, como os pais) ou imperativo corporativo (ser “agente cultural”), tem de ser de esquerda sem ser, ou alguma vez ter sido, de esquerda. É o “princípio do Nirvana” aplicado à política. Não querem que os chateiem. Um pequeno afago utópico chega, e a má poesia, como de costume, ajuda. Sem cinismo, para algumas pessoas que a acham boa. Com imenso cinismo, misturado com a tontice da praxe, para aqueles que a sabem rotundamente insignificante e que no verbo de Alegre acharam a escapatória possível para o seu impasse político.
Também por causa destes últimos – e não apenas por os méritos da candidatura de Cavaco serem indiscutivelmente superiores -, convinha que Alegre não tivesse tantos votos assim. A radical inanidade do grosso dos letrados portugueses não merece sequer uma vitória sobre a presente catástrofe chamada Mário Soares, que se prestam a trair de forma indecorosa.
Dito isto, prefiro que Alegre fique à frente de Soares. E muito, muito, atrás de Cavaco. Porque o caso de Soares é mais grave. E, sobretudo, porque Cavaco, como relembrou recentemente Diogo Pires Aurélio no Diário de Notícias, é, por muito, a “melhor das seis alminhas”. É a única que se arrisca verdadeiramente, e merece ganhar. À primeira.