Pulo do Lobo

sábado, janeiro 14, 2006

Zeca, Aron e Outras Blasfémias

I.
A uma semana da derrota nas urnas, a esquerda entrega-se a uma guerra cultural que faria as delícias de Bourdieu. O primeiro tiro até foi disparado por Cavaco, quando cantou o "Grândola, Vila Morena". Mário Mesquita, em crónica no Público, condenou-o por "apropriação de símbolos alheios", "hipocrisia" e até "blasfémia de religião-política" porque essa canção exprime "o imaginário do 25 de Abril, da esquerda e muito em especial dos comunistas". Vital Moreira chega mesmo a perguntar, em tom catilinário: "não haverá limites para o oportunismo eleitoral?" Ontem, foi Alegre a declarar-se "chocado" por ouvir de Ramalho Eanes que "Cavaco é o candidato do 25 de Abril". O mesmo Alegre que se multiplica em homenagens a Cunhal, Torga, Fernando Vale, Salgado Zenha, Sousa Franco... O mesmo Alegre por sua vez acusado de "oportunismo" pelo comunista Jerónimo de Sousa e de "uma espécie de memória de Abril pequenina e oportunista" por Joana Amaral Dias. "Se Álvaro Cunhal fosse vivo, teria dito que não era decente", queixa-se aquele. "Será que Alegre até gosta de ver Cavaco a cantar a Grândola?", interroga-se esta.
II.
O mesmo argumento em distintas versões: há símbolos com uma origem política tão marcante que não podem ser património de todos. Algo assim como o totem da tribo, já que é de tribos que se trata. Não discutamos com as tribos os respectivos totems - a memória dos seus (e de mais ninguém) mortos, a superstição de saber o que eles pensariam se fossem vivos, o direito histórico de amaldiçoar os ímpios, o exaltante consolo de nomear perfídias e traições. Não discutamos porque é uma questão de fé. Há muito que Raymond Aron nos avisara: a política é o ópio dos intelectuais, a religião sem Deus dos órfãos das utopias. Tal como Le Pen quer "a França para os franceses", a esquerda recusa partilhar a sagrada herança. A França de Le Pen é mística, só existe por meio de uma visão ideal da pátria. A herança da esquerda é igualmente mística, só existe por meio de uma "mitologia retrospectiva". Por isso, a França de Le Pen pára às portas de Paris. Por isso, o imaginário de Abril pára às portas de Cavaco.
III.
Não discuto totems, mas discuto tabus. Para Aron, a tal "mitologia retrospectiva" fundava-se em três mitos: o mito da esquerda, o mito da revolução e o mito do proletariado. Todos estão vivos e todos são falsos.
A esquerda. Qual esquerda? A de Soares, a de Alegre, a de Louçã ou a de Jerónimo? Ou a de Garcia Pereira? Ou mesmo a de Sócrates? Qual delas é herdeira do imaginário de Abril?
A revolução. Aquela que alguns proclamam que, afinal, não foi feita? Ou a que felizmente existe e foi feita também pela direita - no Palácio de Cristal, no 25 de Novembro, em todas as eleições (sempre limpas, mesmo quando a direita perdeu), na vitória da AD e nas maiorias de Cavaco?
O proletariado. As massas? Mas as massas preparam-se para votar em massa no Cavaco "de direita", "liberal" e "dos interesses". Ou as sondagens reflectem um admirável país novo onde só há capitalistas e latifundiários?
Nos trinta anos da democracia portuguesa, a alternativa nunca foi apenas entre o PS e o PCP. Se assim fosse, teríamos simplesmente substituído uma ditadura por outra.
Era isso o que queriam?
Eu não.
E olhem que não sou o único.

4 Comments:

  • At 6:30 da tarde, Blogger Bruno Gouveia Gonçalves said…

    Qual foi mesmo o objectivo do post?

     
  • At 9:13 da tarde, Blogger ARD said…

    Words, words, words...
    Quanto à derrota nas urnas, veremos.
    Quanto ao Prof. a cantar "Grândola", não tente, mais uma vez, baralhar as coisas: o candidato representa, reúne e é de direita; cantar a canção em causa, é um embuste na medida em que se destina a diluir e encobrir esse facto.
    Porque será que a direita tem tanta relutância em assumir-se?
    "Grândola, vila morena" é do domínio público? Pois é; também o "Cara al sol" e não passa pela cabeça de alguém de esquerda cantarolá-la, ainda que para "sacar" votos.
    "Cavaco é o candidato do 25 de Abril"??!!!
    Por favor..Já agora, digam que os outros são os do 28 de Maio!
    De resto, vindo do chefe do 25 de Novembro, tem alguma graça! Se não fosse conhecido o sentido de humor do Gen e o do dandidato direitista, diria que é um bom chiste.
    Quanto a Aron, que fique com ele quem nele se reconhece.
    Terá tido "razão antes do tempo"? Pois, bom proveito.Por mim, prefiro ter razão no tempo certo.
    Mais:TODAS as esquerdas se podem reivindicar de Abril; nenhuma direita o deveria fazer.É verdade que nem toda a direita se opôs ao 25 de Abril; mas essa apenas o "sofreram", não o desejaram e nada fizeram por ele.Aceitaram-no, é certo. Mas só.
    E atenção:o triunfalismo chocarreiro,tal como a arrogância, pode trazer grandes desgostos...

     
  • At 10:55 da tarde, Blogger el s (pc) said…

    Mesmo que apoiasse Cavaco, jamais andaria a cantar de galo a dizer que a vitória já aí canta. Se verem a tracking poll da marktest eu começaria a estar preocupado.
    Dados brutos:
    Cavaco: 43.1 - E tem vindo a descerrrrrr.
    Esquerda: 33.1
    Não sabem: 11.1 (e quase todos de esqerda).
    Já agora a mesma sondagem mostra que a distância de Louça (a subir) para Soares (a descer) é menor do que a de Soares para Alegre (a subir).
    Se apoiasse Soares eu preocuparia-me já não em bater Alegre, mas de ficar à frente de Louçã.

     
  • At 12:04 da tarde, Blogger Pedro Picoito said…

    Caro Vítor Correia, o seu comentário é muito interessante mas parece-me que a notícia da morte da esquerda portuguesa é, como dizia o outro, um pouco exagerada. Agora, que a esquerda portuguesa tem que se redefinir e que estas eleições mostraram isso mesmo, lá isso tem e lá isso mostraram. Mas não me meto no caso porque não é um problema meu...

     

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