Pulo do Lobo

segunda-feira, janeiro 16, 2006

Grândola, Furet e Outras Heresias: Resposta ao André Belo (I)

E à 25ª hora, uma polémica ideológica.
Quis a sorte que a crítica a este meu post tenha levado o André Belo de volta ao Super-Mário. A sorte, sim, porque sou um (dos) devoto(s) da bela prosa, desde os tempos da FCSH. Depois ele foi fazer um brilhante doutoramento a Paris, ao mesmo tempo que fazia por cá o brilhante Barnabé. Eu nem uma coisa nem outra: a vitória de Cavaco é mesmo a minha última hipótese de redenção. Eis-nos, pois, de novo juntos em campo e de novo em campos opostos.
E que diz o André? (Nota: vale a pena ler o post todo.)
Diz que "o que se critica em Cavaco é só cantar "Grândola" para as televisões e em campanha eleitoral, nunca antes e nunca mais depois. Cavaco não quer saber de "Grândola" para nada." Que canção de Zeca Afonso seria uma mera estratégia para conquistar o eleitorado de centro-esquerda, estratégia que a própria obra não permite. Se Cavaco usa a frase "o povo é quem mais ordena" está a ser populista porque "o povo revolucionário de José Afonso" não é "o povo eleitoral de Cavaco". Que sem democracia, o povo cantado em "Grândola" nada ordenava, a não ser "dentro de ti ó cidade", e por isso lutava pela revolução. Que o "povo" de Cavaco nunca alinharia com uma "terra da fraternidade" e onde houvesse "em cada rosto igualdade". Em resumo, que Cavaco "se apropria de um hino da oposição a um regime que ele próprio não combateu. Mas não é tanto isso que é grave. O que é grave é ele querer agora, cantando e rindo, ocultar-nos isso."
De acordo: talvez Cavaco nunca tenha cantado Zeca Afonso "antes", apesar de não ser propriamente um salazarista. A comparação absurda entre Cavaco e Salazar, que o André tem a fineza de não repetir, deriva mais do estilo de governo cavaquista - aquilo a que ele chama "o pior cavaquismo" - do que de qualquer prova de desafecto de Cavaco à democracia, antes ou depois do 25 de Abril. Não sou tão ingénuo ou tão perverso que vá negar a intencionalidade política de cantar "Grândola" em campanha, mas a questão não é essa. A questão é saber se o imaginário do 25 de Abril tem intérpretes autorizados. A esquerda utópica acha que sim. Lamento descobrir que o André também.
E lamento porque isso é confiscar a memória de Abril em proveito de alguns. Um erro, se me permitem. O que deu ao 25 de Abril o consenso esmagador de que hoje goza entre a maioria dos portugueses (o "povo eleitoral") foi a percepção de que a democracia nasceu para todos e não apenas para o povo de Grândola. Se essa percepção corresponde ou não ao pensamento do Zeca Afonso não interessa muito porque os símbolos, quando duram, vão além do seu contexto. A memória de Abril que os órfãos das utopias nos propõem, e o povo de Cavaco não poderia partilhar, é sem dúvida heróica, mas terrivelmente redutora. Divide sem reinar. É semidemocrática - atribui a essência da democracia só a um dos lados.
Ora, por muito que custe ao André e aos viúvos dos amanhãs que cantam, o imaginário de Abril mudou nestes trinta anos. Onde antes todos viam a pureza de um ideal revolucionário com origem na esquerda - "Portugal a caminho do socialismo", etc. -, a maioria vê agora as várias faces de uma democracia pluralista com três décadas de história: Spínola e Salgueiro Maia, Otelo e o Palácio de Cristal, Vasco Gonçalves e Sá Carneiro, Cunhal e o 25 de Novembro, Soares e Ramalho Eanes, a adesão à CEE e... as maiorias absolutas de Cavaco Silva. Porque Cavaco, goste-se ou não, pertence sem favor à história da democracia portuguesa. Nem com bolo-rei o podem apagar da fotografia. E assim, não tendo sido um militante da oposição à ditadura, tem toda a legitimidade para cantar "Grândola" e fazer de tal acto um argumento eleitoral. E assim, não tendo percebido isso, a esquerda verá muitos dos seus votos passarem a fronteira a salto no próximo Domingo. (cont.)

14 Comments:

  • At 7:27 da tarde, Blogger ARD said…

    A confusão (o confusionismo) continua...
    Para além da auto-proclamação do autor como porta-voz da "maioria" ("a maioria vê agora a prática, etc. ...), que lembra muito aqueles políticos que presumem saber o que o "povo português" sabe ou quer, a tentativa de fazer passar como normalíssima a atitude de CS a cantar "Grândola" já foi, parece-me, suficientemente desmontada desmontada.
    Apesar de continuar a reagir como se alguém quisesse PROÍBIR CS de cantar o que lhe der na real gana, tenho a certeza que o autor do post já entendeu perfeitamente a razão dos comentários negativos e crítico sobre o "fait divers".

     
  • At 10:31 da tarde, Blogger el s (pc) said…

    Gostaria de saber o que pensavas se Alegre cantasse em Viseu: Pão, Paz e Democracia, todos unidos...

     
  • At 1:31 da manhã, Blogger Bernardo said…

    ´os viúvos...´ está muito bem apanhada.

    Bons textos os que escreves.
    Parabéns a toda a malt pelo blog

     
  • At 3:19 da manhã, Blogger zazie said…

    naaa.... ambos os argumentos são válidos mas por más razões. A mais básica é que o 25 de Abril foi queda da ditadura mas em nada nos diz que era para ser democracia. E Grândola Vila Morena nunca foi canção de resistência ou que se usasse na luta contra a ditadura.

    Assim como assim cantasse ele o "eles comem tudo" ainda está actual...
    ";O)))

     
  • At 1:43 da tarde, Blogger zazie said…

    bom, se calhar no outro comentário expliquei-me mal. Já não me lembro do que escrevi à pressa e ainda não apareceu.

    O que estava a dizer é que vocês os 2 insistem no mesmo logro por motivos diferentes. E o logro é este: o PREC e até o próprio 25 de Abril não foi o estabelecimento de qualquer democracia em Portugal. O 25 de Abril é um símbolo respeitável porque deitou abaixo uma ditadura. Mais nada. Mesmo mais nada. Grândola tornou-se uma canção do PREC e dos órfãos do PREC- dos marxistas-leninistas (maoistas alguns), também e todos estalinistas mesmo não o afirmando. A isto se passou a chamar esquerda e a quem não se meteu nisto ou disto se afastou por espírito verdadeiramente democrático passou-se na altura (e ainda hoje) a chamar-se "fassista".

    Para um órfão da revolução que não viveu mas na ideologia da qual foi formado, todos os símbolos do PREC são automaticamente símbolos de liberdade. E isso é mentira. É devido a esse erro e ao não reconhecimento (por não terem idade ou por geracionalmente não os informarem) que ainda hoje se advogam da famosa superioridade moral. E é por isto tudo que a esquerda está mais que inquinada na nossa História.
    Que a direita também o esteja por outros motivos é outra conversa...

    ou não será...mas a cantilena do Cavaco foi mera propaganda local. Mais nada.

     
  • At 1:08 da tarde, Blogger Pedro Picoito said…

    Zazie, o teu comentário dá-me ideia para um post. Vamos ver se tenho tempo.

     
  • At 1:56 da tarde, Blogger zazie said…

    então tá bem ehehe

    engraçado é que eu continuo na minha, não se sabe nada da história de Portugal recente. E tenho para mim que e´devido a essa ausência transformada em mitos diversos que se fundamentam dicotomias ideológicas igualmente vazias.
    O PREC foi poder caído na rua e intuitos de ditadura. Mas dizer-se isto ainda continua a estar marcado pelo ideia de ressabiamento de saudosos da outra velha ditadura- que também os houve à mistura.
    Quanto ao teu somatório de Spinola mais este mais aquele mais aqueloutro eu diria antes apesar deste daquele e daqueloutro, por consequência dos e graças ao 11 de Setembro e Mário Soares. Sem qualquer sentido de propaganda. Tal como o disse o VPV numa das melhores sínteses que se fez do 25 de Abril

     
  • At 4:05 da tarde, Blogger Pedro Picoito said…

    Bem, tenho que pensar um bocadinho, e se calhar desta vez eu estou enganado e o VPV não (às vezes acontece). Mas a ideia de um 25 de Abril puro traído pelo PREC também não me convence totalmente. Não há revoluções ideais, há história. O que era o 25 de Abril puro? Os três Ds? Ou o marcelismo sem Marcelo, como terá pensado a certa altura o Spínola? Ainda assim, para já prefiro o somatório.

     
  • At 4:24 da tarde, Blogger zazie said…

    mas o VPV nunca falou em 25 de Abril puro. Nem sequer em revolução. Eu que o vivi nunca me dei conta que era revolução. Nunca.
    Isso foi dito a posteriori. Foi o que se passou a chamar. Sempre o vi como um golpe de Estado. Como o VPV o considera. Quanto a purismos também nunca os encontrei.

    Até por uma razão mais simples- nunca se percebeu qual era a "ideologia" que o norteava. Na prática foi derrubar de uma ditadura e tentativa de instaurar um comunismo fora de época. Na prática ainda, foi um superar de ambas e um empurrão imprescindível para uma evolução e modernização de Portugal.

    Não vale a pena pensar-se se esta poderia ter sido de outra forma porque a coisa está feita. Só que a história e os factos não se traduzem apenas em "ideologias". Mas infelizmente o poder destas assimilia-se mais facilmente à agit prop e, como dizia o outro pistoleiro, a lenda sobrepõe-se sempre à realidade.

    Quando falei no "apesar de" referia-me a isto. O Spínola não foi nem era nada. Não tinha qualquer pensamento para Portugal. Ou bem que diferenciamos os factos e os seus autores- a que eu chamei operacionais, ou bem que caímos na caldibana de pseudo-pensamentos em que um Otelo pode ombrear com um Jaime Neves ou um Spínola com um Mário Soares.

    Eu diria que temos vindo a escapar de boas... e com umas ajudas certas em momentos certos e enorme capacidade de adaptação por parte do povo.

    O melhor exemplo disso foi (e ainda vai sendo) a sensatez de voto. Logo que houve eleições quem as ganhou? a expressão popular de um povo "a viver uma revolução" ou a expressão de uma necessidade de sensatez democrática que nos afastasse desse excesso de "cabeças quentes"?

     
  • At 4:30 da tarde, Blogger zazie said…

    aquele comentário estava cheio de gralhas- queria dizer "por consequência dos militares. Os militares foram os operacionais e o resto foi sequência deste acto. Como é óbivo a democracia segui-se ao acto por isso é fruto dele. Mas apenas nessa dimensão histórica e temporal. Nunca como produto da "ideologia" dos que fizeram o golpe de Estado. Que também não eram sequer comunas. Não eram nada...
    O PCP aparece depois e a ideologia comunista que esteve para ser implantada é, de facto, mais produto do PREC que do derrubar do que por cá estava.
    Que se meta tudo isto no mesmo saco e ainda se consiga, em golpe de circo Chen, chamar-lhe produto de "ideais de liberdade" e de resistância anti-fascista é que já é demais.

     
  • At 5:01 da tarde, Blogger zazie said…

    mas a principal questão está resumida no teu último parágrafo:"E assim, não tendo percebido isso, a esquerda verá muitos dos seus votos passarem a fronteira a salto no próximo Domingo"

    Porque motivo ainda há uns tempos atrás havia "sociais democratas", "democratas cristãos"; "socialistas", "centristas", "marxistas-leninistas e derivados e agora arruma-se tudo ao meio nessa dicotomia simplista "esquerda-direita"?

    E porque motivo os "teóricos" ainda vivem nessa ilusão de que o povo vota por "clubismo" ou ideologia"? o povo de esquerda/versus o povo de direita- a degladiarem-se sempre que uns tantos de sempre se impingem para serem escolhidos?

    essa é que é a questão. Por mim não faço a menor ideia de que "fezada" seria preciso incutir em milhões de Portugueses para os convencer que escolher um destes brilhantes e supreendentemente originais candidatos é ainda chamado de prática democrática...
    mas enfim... Ou pior: escolha entre duas trincheiras em que se decide o futuro de Portugal: a "esquerda e a direita"...

     
  • At 6:40 da tarde, Blogger ARD said…

    Muita parra,pouca uva...

     
  • At 3:45 da manhã, Anonymous Anónimo said…

  • At 1:37 da manhã, Anonymous Anónimo said…

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