Pulo do Lobo

terça-feira, janeiro 17, 2006

Grândola, Furet e Outras Heresias: Resposta ao André Belo (II)

Caro André
Antes que eu tivesse conseguido acabar este post em duas remessas, já respondeste "a fim de me poupar o teclado a discursos mais longos". Lamento contrariar-te (mais uma vez), mas não vou perder a oportunidade de levar à exaustão a primeira polémica cavaco-soarista que não versa a Kátia Guerreiro ou o Helesponto. Além disso, já tinha o discurso preparado - ficou um pouco longo, é verdade - e não se manda assim embora um discurso.
Dizes que não representas a esquerda "em abstracto". Eu sei, mas eu também não represento a direita em abstracto e muito menos a direita "que não engole Grândola". O que está em causa "não é a mitologia da esquerda e da direita". Tu detestas rótulos simplistas, o que constitui uma das razões pelas quais vale a pena conversar contigo. Escapa-me, por isso, que "não se possa cantar aquela cantiga e fingir que ela não é um hino à igualdade, à fraternidade social e ao poder popular. Ainda hoje, não apenas ontem. Para lá da memória afectiva, a mensagem está lá." Ou seja, não há tribos mas há totems exclusivos das tribos - pelo menos da "mensagem" e da "memória afectiva" das tribos.
Se não estás a falar em nome próprio, este argumento tem uma falha. Quem foi que disse que Cavaco não é a favor de uma maior igualdade e de uma maior fraternidade social, mesmo que não seja, certamente, da igualdade e da fraternidade "em abstracto"? E quem foi que disse que todos aqueles que criticam Cavaco por se "apropriar" do imaginário de Abril são defensores do "poder popular"? Mário Mesquita, Vital Moreira, Joana Amaral Dias, até Constança Cunha e Sá são os novos arautos do revolução proletária? Ou Soares, Alegre e Louçã? Valha-nos Deus! Para usar uma frase muito na moda - se o Zeca fosse vivo... Meu caro André, tu não representarás a esquerda, mas há tiques inconfundíveis. Por exemplo, proclamar contra toda a evidência que a esquerda tem o "monopólio do coração", como Giscard d`Estaing objectou uma vez a Mitterrand num debate célebre (em presidenciais que Giscard venceu, se não me falha a memória afectiva.)
O que está em causa, isso sim, e tu sabes tão bem como eu - aliás melhor, porque estudas o assunto e eu não passo de um vago medievalista -, é a velha discussão do bicentenário da Revolução Francesa. Em 1978, François Furet escreveu num livrinho brilhante (Penser la Révolution Française) uma frase que incendiou a França: "a Revolução Francesa terminou". Queria ele dizer que, duzentos anos depois, toda a sociedade francesa via placidamente nos acontecimentos de 1789 a narrativa canónica das suas origens. A Revolução passara a ser invocada por todas as forças políticas e, portanto, tornara-se conservadora: já não era, excepto no nome, revolucionária. Apesar do escândalo (e que em nada se compara com o doméstico episódio grandolense), parece difícil não concordar com Furet. A liberdade tornou-se democracia, a igualdade Estado social e a fraternidade ética republicana. Não há em França partido que não tenha a boca cheia delas, à esquerda e à direita. E o bicentenário foi celebrado como o maior evento nacional desde a Libertação, com pompa, circunstância e Mitterrrand na Presidência.
Por outras palavras, a Revolução Francesa acabou por ser vítima do seu próprio sucesso. Arrisco-me a acrescentar que o mesmo se passa hoje com o 25 de Abril. Tirando alguns líricos à esquerda, que queriam outra revolução, e à direita, que não queriam revolução nenhuma, os portugueses acreditam esmagadoramente que 1974 é o momento fundador do regime. "O primeiro dia do resto das suas vidas", se assim posso dizer - caso os censores me permitam. A democracia aí está e, apesar dos medos de alguns (os mesmos que agora agitam o espantalho da instabilidade com Cavaco em Belém...), até já houve maiorias absolutas da AD e do PSD sem que o dr. Salazar voltasse do remanso de Santa Comba para reclamar a cadeira. A questão do regime pura e simplesmente não se põe. Max Weber diria que estamos em plena rotinização do 25 de Abril, o melhor sinal do "regular funcionamento das instituições democráticas". Tu preferes a carismática "mensagem" do "poder popular" ou, para citar o cartaz do Bloco, a revolução que "ainda é uma criança".
O mais surpreeendente, porém, é que este consenso já não nos surpreenda, ao contrário das crianças. Basta lembrar a Revolução Liberal de 1820, com uma guerra civil, três Constituições, várias guerrilhas regionais (do Algarve ao Minho) e trinta anos de golpes de Estado até ao pouco carismático rotativismo, ou os dezasseis anos de overdose de carisma da República, que levaram directamente à bancarrota e ao dr. Salazar, para se perceber que as coisa podiam ter corrido mal. Não correram e é justo que agradeçamos a Soares e à Europa, mas também aos portugueses que ajudaram a consolidar a democracia com a vitória da AD, o execrável Bloco Central e as maiorias absolutas de Cavaco. Será isso suficiente para acreditar na sua "sinceridade" quando cantam "Grândola"? Não sei. Só sei que, no próximo Domingo, não vou eleger uma sinceridade, mas uma realidade: o primeiro Presidente da República de uma cor diferente do dr. Sampaio. Se isto não é a democracia, então o que é?
Um abraço
Pedro

3 Comments:

  • At 5:15 da tarde, Blogger ARD said…

    "caso os censores me permitam"!...
    Essa tem graça, vinda daí.

     
  • At 10:09 da tarde, Blogger zazie said…

    mas vocês os dois estão convencidos que o Cavaco vai passar a cantar o Grândola sempre que fizer comunicação à Nação?

    ué... até que tinha a sua piada
    ":O.

    já não se pode fazer um pequenino coro de circusntância que tomam-nos logo à letra...

     
  • At 11:41 da tarde, Blogger Pedro Picoito said…

    E porque não? Isso do hino está muito visto...

     

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